Música

http://www.blogger.com/add-widget?widget.title=Megadeth Radio&widget.content=%3cscript type%3d%22text%2fjavascript%22 src%3d%22http%3a%2f%2fwidgets.clearspring.com%2fo%2f4adc6e9803694c34%2f4b33ce080a7736c8%2f4adc6e98366e230e%2f41409611%2fwidget.js%22%3e%3c%2fscript%3e

Pages

26 de agosto de 2011

Os Males do Mundo

No balanço do ônibus, Esmeralda se segurava como podia. O esforço era para equilibrar as sacolas e os pensamentos, o corpo que pendia solto para os lados pisando em pés alheios e se suspendendo no ar e a mente que corria solta tentando escapar pelas janelas, respirar, quem sabe. Eram seis da tarde e o ônibus se encontrava absolutamente lotado.

O dia era festivo, ainda que sob as garras da segunda-feira. Aniversário de Daniel, filho de Esmeralda, que completava seis anos. Já fazia dias, o garoto não falava em outra coisa na pequena casa, em como teria bolo, brigadeiro e refrigerante, em como veria todos os seus amigos. Esmeralda inicialmente pretendia esperar até o fim de semana seguinte, pois acreditava que dava azar comemorar com antecedência, não só aniversários como qualquer outra coisa, descartando, portanto a possibilidade de celebrar os anos no domingo logo antes. Ainda havia que se pesar que, mesmo deixando a sua superstição de lado, havia também a dos outros. Sua mãe com certeza diria algo - "minha filha gosta de jogar com a sorte" - já imaginava a ironia mordaz de dona Ana espalhando comentários entre os convidados.

Não, de súbito houvera decidido fazer na segunda-feira, ocorreu-lhe no serviço pouco depois do almoço enquanto digeria mais um dia de trabalho. Seria naquela noite mesmo, só as crianças, bolo, brigadeiro e refrigerante. Daniel não falara em presente, ou em decoração (importante que se diga), mas esses são os piores, com um olhar conduzira a sua mãe ao fim daquela tarde que, querendo honrar as expectativas do filho, passou em algumas lojas no centro da cidade depois do expediente e comprou copos e pratos de plástico, velas e, por fim, o brinquedo, tudo temático de acordo com o desenho do menino super-herói que seu filho tanto gostava.

Mais malabarismos entre um pensamento e outro, Esmeralda tentou alcançar o celular na bolsa, precisava acertar os últimos preparativos, garantir, por exemplo, que seu marido fora buscar o bolo com a confeiteira da rua do lado e o cunhado não esquecera de buscar os colegas de Daniel cujos os pais, por falta de tempo e condição (e vontade, em alguns casos, Esmeralda suspeitava) não conseguiriam levar à festinha.

O celular deu uns quantos toques sem resposta, seu braço cansava na posição incômoda e o equilíbrio ficava difícil. A mulher cansada desistiu depois de duas tentativas e foi tomada por uma profunda sensação de desamparo. Esmeralda soltou o celular levando-o a bolsa com dificuldade e deixou escapar um bocejo, levou as mãos a boca e depois ao apoio, embora a esta altura fosse fútil. O trafego engasgava, o para-e-anda mal dava para derrubar velhinhas que os motoristas gostam tanto de tombar... ou para levá-la para casa tão cedo. Restava-lhe olhar pela janela, pelo pouco que era possível ver dela entre os rostos anônimos.

Um senhor idoso passava a chave na porta de um antigo e mal cuidado prédio, destes tão comuns no centro, ajeitava a boina e caminhava tranquilo com as mãos no bolso. Enlatada e sem poder colocar as mãos no bolso sem causar estardalhaço, Esmeralda refletia. Até então, acreditara de uma forma vaga e facilmente refutável que ninguém habitava aqueles prédios. Em seu cristianismo asséptico, limpava seus critérios de ponderações muito ruidosas tentando separar as coisas do mundo inteiro entre bem e mal. Ao passo que o sorriso de seu filho lhe saísse como benção de Deus, ter de morar na periferia, se submeter a jornadas cotidianas indignas nos ônibus mal cuidados, nas ruas mal cuidadas... entre pessoas mal cuidadas, era maldade. Não como se alguém ou algo a praticasse, não injustiça de alguma forma, mas maldade pura que cabia ao seu coração suportar.

O sinal abriu permitindo a passagem e o ônibus não se mexeu, Esmeralda nem se lembrava de que estivesse fechado, estava aérea, longe, longe de casa. Nessas horas de desassossego e solidão, deixamos escapar nossos sentimentos mais sombrios. Para a mulher trabalhadora, de família, o tempo rugia e não permitia depositar as angústias nos esclarecidos ouvidos de um psicólogo em palavras amaciadas no divã e a compaixão comprada para comportá-las. Não, a ela restava equilibrar suas angustias junto das sacolas e esconder-se na multidão. Ressalvo, no entanto, que a indignação parte muito mais do narrador, a mulher somente ocorria procurar refúgio do mal que a tomava e a pena, não inveja, por não ter as condições de fugir em paz, nem que fosse por alguns instantes, como tantos outros.

Fugindo como pôde se foi, para ainda mais longe de onde já estava, de casa e agora de si mesma, tentando imaginar sentimentos melhores ou pelo menos um futuro, uma realidade possível e tangível, onde se sentisse de fato melhor. Não queria com isso expurgar o mal do mundo, era modesta, desejava tão somente a força para continuar a combatê-lo. A mãe pensou então em seu filho e viu a ternura lhe escapar das mãos cansadas entra tantas dúvidas e sacolas. Ao imaginar o que a traria paz, quis a sua cama e seus belos sonhos, sonhava com a oportunidade de voltar a sonhar, queria dormir e descansar para então querer algo de verdade, mas algo lhe impedia.

Daniel teria a sua festa e ela não teria o seu descanso tão cedo, de todos os descaminhos da humanidade, esta lhe pareceu a maior injustiça. Por um segundo, desejou que sua criança não tivesse aniversario, não nesta noite, nem neste ano, eram tempos difíceis, não tinha necessidade. Mal lhe ocorrera a ideia, dissolvera o raciocínio arrebatada pelo sentimento de culpa. Mas já era tarde para voltar atrás, não esqueceria, bastou um segundo. Na loucura dos homens, definimos nossa existência em um instante, talvez porque nos falte a compreensão do quadro maior, talvez porque a originalidade seja um bem tão raro a criaturas vulgares que parece lícito prestar dedicação e pagar penitência de uma vida por meia-dúzia de ideias.

Na cabeça de Esmeralda, antes daquele segundo, o mal operava no mundo sem razão e sem origem, pois se pensasse demais lembraria que Deus criou todas as coisas, inclusive... não, era muito contraditório, não importando o montante de justificativas das missas e bíblias. De repente, percebera por si que a maldade não caía dos céus nos perfurando o peito como balas perdidas, mas emergia de lá mesmo, das profundezas do coração dos homens, do coração dela que há pouco criara um mundo sem aniversários, um mundo onde o sorriso de uma criança "não tinha necessidade". Reluzia no coração da pobre mulher um mundo rico, uma maquete do Reino de Deus construída e preservada com determinação e fé que agora ruía. Um segundo, foi o que bastou, como se um interruptor tivesse sido atacado subitamente transformando um instante de hesitação em escuridão constante.

A grande maldade, agora percebia, é dar-se conta da parcela de culpa que nos cabe, de que de repente o mundo de fora é uma fiel reprodução de nosso mundo interior, um mundo egoísta para pessoas egoístas, nada mais natural. Aos solavancos, o ônibus avançou, já corria, o vento balançando os poucos fios de cabelo soltos pelo rabo de cavalo de Esmeralda, e seu pensamento fixo, não se movera e agora se afogava no mar de angústia. O mal venceu.

4 comentários:

Iara De Dupont disse...

Mas o menino teve sua festinha? Fiquei com dó!
Brilhante texto!! Infelizmente real, a maldade está dentro de nós, o mundo só reflete isso ....ah, santa ignorancia..como o mundo seria melhor se soubessemos do nosso poder....
Bom te ver de volta em grande estilo!@bjs

Amarin disse...

Olá!

Excelente texto, com ótimo vocabulário! Você escreve muito bem, parabéns!

Siga-me também:

brevescronicas.blogspot.com

Um abraço!

Anselmo

Amarin disse...

Olá!

Quanto à sua exegese, repito o que disse no texto que pensar no outro é um bom exercício, não significando que isso seja suficiente, mas que é o princípio, uma vez que o indivíduo pensa em outra perspectiva automaticamente ele passa a entendê-la. Portanto o altruísmo não é narcisismo coisa alguma, mas sim o oposto do egoísmo!

Anselmo

Amarin disse...

Hahaha!

Olha cara, você ainda não entendeu!

Você está neurótico com a palavra "narcisismo". Cara, longe disso o texto sugere que sejamos menos egoístas em nossas vidas, não trata-se de "fingir" sentir algo alheio, mas sentir de fato! Ah, meu amigo nada como sentir na própria pele o drama, basta ter capacidade imaginativa. Se eu lhe pergunto como você se sentiria no lugar de um mendigo, sem ter o que comer, sem abrigo da chuva ou frio, sem segurança, claramente que você responderia que seria péssimo! Então não refere-se a fingimento, ou idolatria própria, mas serve como uma dica. Só isso!

Agora desprezo sua opinião quanto ao mundo. Pois se "as coisas são como são", por que está discutindo este assunto? Enfim, eu procuro ser uma pessoa melhor a cada dia, e como qualquer pessoa faço parte deste mundo e não sou egoísta.

Espero que tenha entendido.