Eram dez da noite e os garotos ainda se encontravam na rua. Suas mães já saiam às janelas chamando seus nomes, estava tarde e no dia seguinte havia escola. Sairam crianças de trás de arbustos, de pilastras, debaixo de carros, enfim, dos mais diversos esconderijos.
Dois porém, não obedeceram suas mães. Roberto, o hábil vasculhador, procurava Pedrinho que sempre acabava sobrando. A cada dia que passava seus esconderijos se revelavam mais mirabolantes e a brincadeira se estendia pela noite.
Com o tempo ele havia perdido o interesse em voltar ao ponto incial e dar o tradicional grito de "salvo!", ou "salvo o mundo!", o grande barato era se manter no esconderijo até que fosse descoberto. Acho que gostava da idéia de que as pessoas procurassem por ele.
Desta vez tinha sido particularmente engenhoso, soubera no dia anterior que uma das caixas d'agua de sua casa não estava em uso já a algum tempo. Escondeu-se rapidamente na caixa vazia assim que todos se posicionaram, ninguém poderia saber.
Um hora se passou e nada, nenhum sinal do último garoto. Roberto ficou preocupado e começou a chamar por seu nome, dizia "você venceu, pode sair agora!". Nenhum ruído se ouvia na noite escura fora o eco de sua voz desesperada, já em tom de choro.
Não deviam ter estendido a brincadeira até tão tarde, algo pode ter acontecido. Chamou por sua mãe que alertou a vizinhança rapidamente, uma busca foi organizada. E Pedrinho ria, ria e se divertia com esta sua travessura.
A busca prosseguiu por horas a fio invadindo a madrugada até que foi dada por encerrada, à luz do dia os resultados seriam melhores. Um escolha difícil para a mãe, abandonar o filho aos cuidados da noite, porém, a escolha mais sensata no momento.
Pedrinho poderia voltar agora e anunciar sua brincadeira, mas não conseguia. Não era medo da possível punição, não era por diversão, simplesmente se sentia mais seguro ali. Estava longe dos olhos de todos, se contentava com o status de observador.
Passaram se dias e dias a procura. Para se manter escondido, o fugitivo bebericava a água da chuva e saboreava as frutas de árvores próximas, bem como qualquer alimento de fácil furto.
E a busca prosseguia sem descanso, cada hora da luz do dia era aproveitada.
Eis que com o tempo foi se desacreditando nas possibilidades de rever o menino desaparecido, foram rareando os voluntários, e os poucos que restavam começavam a se perguntar o que procuravam. A resposta, outrora clara e na ponta da língua, agora era nebulosa e incerta.
O que estava faltando? Nada. Ao ver que todos que desistiam da busca tinham de volta o curso de suas vidas sem qualquer débito, outros seguiam o exemplo. "O menino perdido" se tornara um mito, uma lenda e nada mais.
Alguns meses se passaram até que próprio mito se perdera. Já segura de volta em sua rotina, dona Lara, mãe de Pedrinho, resolve reativar a caixa d'agua ociosa. O racionamento acabara alguns dias antes, não tinha porque deixa-la inativa.
Sobe então ao telhado e abre a tampa da caixa. A sua frente se encontrava um menino maltrapilho dormindo em cima de almofadas velhas. Lentamente abre os olhos sob a forte luz do sol e pergunta: "mãe?". A silueta ofuscada pelo sol estende os braços.
Encolhido, o garoto em prantos aguarda o carinho da mãe e fecha seus olhos. A medida que os braços preenchem a caixa vazia o coração de Pedrinho acelera, percebe agora a estupidez de seu ato. Dona Lara então puxa a almofada e limpa os restos de comida do local.
O menino desesperado grita enquanto a silueta se afasta até que a tampa sela seu esconderijo novamente. Ouve-se ruídos terríveis enquanto tudo começa a tremer: a caixa esta sendo selada. Aterrorizado o garoto atenta para a água turva que agora molhava seus pés.
O líquido sobe lentamente envolvendo aquela alma em pânico presa a um corpo subnutrido. Seus gritos secam na garganta enquanto ergue seus braços com muito esforço. Somente com a àgua já lhe atingindo pescoço ele encontra a tampa, é tarde demais.
Afogado nas águas do esquecimento Pedrinho encontra finalmente o enconderijo perfeito. Longe do olhar de qualquer um, distante de tudo.
Muitas vezes nos econdemos do mundo. Temos medo de nos machucar, de que não gostem de nós, de que não saibamos lidar com nossos sentimentos. Mas sempre chega o dia que este vil teatro exaure todas nossas forças nos afogando em um mar de mentiras.
O que com tanto afinco foi guardado não será mostrado a ninguém, se perdeu nas aguas turvas da indiferença. A grande mensagem é para que nos livremos desse "esconde-esconde" antes que seja tarde demais.
3 comentários:
"Mas sempre chega o dia que este vil teatro exaure todas nossas forças nos afogando em um mar de mentiras"
Caramba,muito bom mesmo!
Vc tem um imenso potencial,grande mesmo.
Parabéns...
Caramba cara!
Curti demais esse ein!
PQP!
Abço t+
Eu gostei do objetivo do menino quanto a brincadeira. A sua diversão era fica escondido até que o encontrassem e não vencer.
Admito que me encontro em algumas partes do texto, evito muitas pessoas e raramente saio de casa, meu pai diz que eu sou um zumbi. No fundo, eu acho que o virtual se torna muita mais comodo para mim, conheço pessoas converso e quando não quero mais, não converso, talvez não seja a coisa mais ética ou sei lá. Entretanto, é o que me convém.
Adorei seu texto, tanto quanto adoro todos os outros. Quando lançar seu livro me fale imediatamente. ;D
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