Sempre tive um costume peculiar, ou talvez comum a todos, de tentar prever o futuro. Encarnando sempre o papel de escritor criava verdadeiros enredos, tramas e personagens bem delineadas. Para além de enxergar questões centrais eu procurava visualizar cenas dessa vida nova.
Nunca me dei ao trabalho de anotar esses devaneios, mas ontem, enquanto fazia novamente esse exercício, resolvi preservar a fantasia aqui no blog. Talvez que sabe eu leia depois de 20 anos, nunca se sabe. O ano é 2028 e estou entrando em minha casa.
"Mais um dia infernal no trabalho, preciso descansar" era tudo o que eu pensava ao girar a chave na fechadura e empurrar a maldita porta que inventou de emperrar. A porta finalmente cede e permite minha entrada, mas não sem antes me pregar uma peça.
Justo quando resolvo empregar mais força na tarefa a porta simplesmente abre com o vento fazendo com que eu me atirasse no chão esbarrando em uma mesinha. Ainda falando palavrões não percebo a bendita mesa que começa a cambalear.
Olho para cima e vejo um porta-retrato caindo em minha direção. Alguns segundos depois sou atingido tendo então de praguear mais um pouco, definitivamente não era o meu dia. Ergo e retrato quebrado de uma meninha de 6 anos vestida de bailarinha.
Ela posava com as mãos na cintura e cara emburrada. Pobre Audrey, sua mãe a havia obrigado a fazer ballet embora estivesse muito mais interessada em fazer kung fu. Confesso que era minha culpa por assistir tantos filmes de ação com ela. Era um momento nosso e nada fazia minha filhinha rir mais do que as caras e bocas do Jack Chan ao bater nos bandidos.
Uma pena que eu perdi o direito de opinar sem gerar grandes discussões. O divórcio havia sido feio, então não custava nada ceder pelo menos na questão do ballet. Eu ainda tinha os fins de semana para nos empanturrar de pipoca e assistir a boa e velha porradaria de sempre.
Levanto com os olhos marejados, minha princesa fazia uma falta danada naquela casa. Enxugo as lagrimas e coloco o porta-retrato em seu lugar, precisava preparar a aula de amanhã. Vou então em direção a uma bagunçada estante abarroada de livros.
Levando meus olhos para longe daquela bagunça, prometendo mais uma vez arruma-la no dia subsequente, dou uma boa olhada em minha sala. Uma varanda com uma cortina amarela restringia a entrada de luz dando ao ambiente cores mais sóbrias.
Após a porta se encontrava um sofá virado para a direção oposta, voltado para a varanda, bem como uma mesinha com o porta-retrato. Na frente se encontrava uma televisão de uns 10 anos atrás e uma coleção de DVDs antigos espalhados a sua volta.
A esquerda, onde eu me encontrava, havia uma estante bagunçada e a direita, o corredor que levava aos quartos. Passando meus olhos pelas paredes vejo vários retratos de minha familia, a maioria com Audrey. Eram retratos digitais e trocavam as fotos de lugar.
Sempre se tinha uma disposição diferente, ainda que eu nunca soubesse direito como programar aquilo. Era tarefa da minha mulher. Eu não sabia como retirar fotos da memória interna e, por consequência, apareciam as vezes algumas fotos de meu casamento.
Brincava com meus amigos que era ainda assombrado pelo fantasma do casamento, que houvera morrido com o divórcio. Amigos esses muito antigos, alguns dos tempos de escola e outros mais da faculdade. Construi nesses ambientes poucos laços, mas muito duradouros.
Minha mulher mesmo veio deste background, ou melhor, minha ex-mulher. Apesar das brigas não deixo de lembrar que ela foi, e ainda é, minha melhor amiga. Confesso que ainda hoje, 3 anos depois do divórcio, é para ela que eu quero ligar quando conquisto algo, com ela que quero comemorar.
Com essas lembranças tão pesadas procuro correr meus olhos mais uma vez pela casa fugindo de pensamentos tristes. Encontro então três diplomas emoldurados. O primeiro data de 2012 "bacharelada em história", o segundo de 2017 "bacharelado em psicologia" e finalmente o terceiro de 2020 "mestrado em história".
Vacilei por um momento na carreira de históriador, mas acho que não se da para fugir de sua vocação. A minha no caso é ser professor. Apesar de já ter sido atingido por bolinhas de papel e ser vítima de apelidos eu adoro meus alunos.
Com uma mente tão divagante desisto de procurar o bendito livro, até esqueci qual era. Sento-me então no sofá e empunho uma guitarra desnecessariamente cara para meu salário plugada em um amplificador igualmente retalhador de contas bancárias.
Não treino tanto quanto na juventude, mas gosto de improvisar às vezes. Cheguei até a gravar um CD com minha bandinha em tempos aureos e fizemos uma pequena turnê pelos bares de São Paulo. Mas o sucesso nunca passou de uma utopia.
Assim como na carreira de escritor, essa aventura não gerou grandes frutos, mas teve seus momentos. Algumas músicas tocam muito raramente em algumas radios e um de meus livros ainda me reverte alguns lucros.
Aliso então meus cabelos longos com alguns fios brancos já aprecendo com o cuidado de não esbarrar no brinco que acabei de fazer na orelha esquerda, crise de meia idade é fogo. Toco então meu grande hit "sr. nostálgico" na guitarra me sentindo 20 anos mais novo.
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:)
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