Música

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17 de junho de 2010

Sigilo Perpétuo (parte 2)

Nos momentos de medo e pânico, nos quais tentava à duras penas apagar as memórias nas pequenas distrações do cotidiano, era impossível travar a exibição do passado diante de seus olhos. A cabine de projeção estava sempre trancada, mesmo agora. Tentava lembrar, mas as imagens não vinham. Viu que mesmo o medo de não ter medo existia.

Há anos, praticamente uma vida inteira, se definia pela tragédia de certa noite, agora mal lembrava. Mesmo sendo algo traumático e doloroso, precisava lembrar, do contrário se sentiria perdido de si. Que capricho cruel! - ele pensava - quando quero lembrar já não me lembro! Foi então que pensou no porque de buscar essa dor, estava livre, enfim!

Fosse porque sabia que bastaria o alívio para que seus demônios voltassem à cabine e rodassem o filme da noite das noites, fosse por uma ingênua e sincera crença de que poderia estar livre, se submeteu a esse raciocício. E, de fato, logo a memória lhe veio...

Em meados dos anos sessenta ou setenta, João não sabia ao certo, lembrava de caminhar pelas ruas de sua cidade. Não morava em uma grande metrópole e seu envolvimento político era quase nulo, mas uma atmosfera densa se fazia sentir, ainda que sutilmente. Mais tarde, João ficaria sabendo se tratar do período mais duro do regime.

Era noite, foi uma das poucas vezes que se atreveu a vagar pela escuridão. Sua avó, senhora muito da cautelosa, sempre lhe dizia: "Depois das oito, não tem nada que presta na rua!" E seguia o conselho à risca, com exceção daquela noite. Não lembrava ao certo o que lhe atrasara, mas com certeza eram mais que oito horas.

Saira da casa de um de seus colegas de estudo, era ano de vestibular e João queria entrar em uma faculdade pública, levava seus deveres a serio. Seus pais até insistiam para que se divertisse e saisse mais. Ainda que não lhe dissessem, por trás dessa descontração, havia a garantia de que sempre haveria a possibilidade de que João assumisse a mercearia do pai.

Lembrava agora! Justamente atendendo aos conselhos de seus pais, ao passo que negligenciava o de sua avó, foi se demorar na casa do companheiro de estudos para jogar conversa fora e beber o vinho que os pais deste tinham na pequena adega. As gerações antigas se mostrariam mais dignas de confiança depois daquela noite...

Levemente alcoolizado, andava pelas ruas mal iluminadas de sua cidade. Chegando a sua rua, um clarão iluminou o seu caminho. Confuso pela vista ofuscada, ou até por culpa das duas taças de vinho (nunca bebera antes, desconhecia os efeitos do álcool) chegou a se perguntar desde quando a sua rua era tão iluminada. Era uma viatura.

O carro da polícia usava de seu pequeno canhão de luz para vasculhar as ruas atrás de um vulto do qual se ouvia os passos desesperados atingindo os paralelepidos. João fora iluminado por um momento, mas, aparentemente, não se aperceberam de sua presença. Procurou ficar calado enquanto a perseguição continuava. Não demorou muito.

Os passos e os gritos foram se aproximando cada vez mais de um atordoado e agora amedrontado João. "Pega! Pega!" - os homens gritavam. O canhão de luz o colocou na mira, mas desta vez lá ficou. O vulto surgiu em suas costas  seguido de perto por um grupo de policiais, alguns segurando as armas no coldre, outros empunhando cassetetes.

O homem caiu tropeçando na fenda dos paralelepidos da rua. De repente, João se viu entre o perseguido e os homens da lei, não acabaria bem... e não acabou. O bando não desacelerou para não dar oportunidade para que o homem caído se levantasse. Eram 21:47, lembrava, pois foi a última coisa que viu antes de desmaiar: seu relógio.

João acordou sentado contra o muro de um beco ao lado do fugitivo. Os policias discutiam sobre quem seria aquele sujeito, ou mesmo se importava quem era. Aparentemente João flagrara algo que não deveria. Foi quando reconheceu o suposto meliante: era o filho do prefeito. Descobriu-se, pelo tom dos homens, se tratar de uma execução.

O humor dos algozes não melhorou ao descobrir que João já despertara e ouvia sua conversa. "Levanta, rapaz! Vem aqui" - um dos policiais o chamou segurando o revolver ainda no coldre. Sem muita escolha, juntou suas forças e tentou obedecer. Levantou meio cambaleante e chegou a ameaçar de cair, mas foi aparado pelo muro nas costas.

"Olha só! O muleque está bêbado!" - deram risada os malvados. Ao se aproximar, seguindo a segunda parte do comando, João percebeu que não eram só polícias, o grupo de extermínio era bastante heterogêneo. E antes fosse apenas isso: muitos deles, talvez todos os não-policiais, eram amigos de seu pai.

Pensando consigo e já projetando conclusões do presente sobre o passado, João percebera porque o regime nunca fora muito duro com sua familia, era um daqueles núcleos colaboricionistas que tomavam as circunstâncias duras como oportunas.

A feição dos homens embranqueceu no segundo em que o reconhecimento se fez mútuo. Seu pai deveria ser muito grande, isso por que, além do terror em reconhecê-lo, obviamente fazia parte do grupo e mesmo assim não precisou colocar a mão na massa.

Veio silêncio.

Muitos dos que já falavam em executá-lo antes de saber quem era passaram de mercenários à piedosos em um segundo. Falavam em deixar irem os dois, até mesmo o marcado para morrer, dando apenas uma prensa no danado. Pelo visto, era tônica na criação de João afastá-lo do que acontecia por baixo dos panos, visão compartilhada com seus comparsas.

Os mais realistas sabiam que a situação era sem volta, sabiam que o rapaz por mais burro que fosse, e sabiam que não era, não esqueceria tudo o que ouviu simplesmente por um ato de "generosidade". Não podiam matá-lo, mas tinham de garantir seu silêncio.

"Toma aqui" - disse aquele que se supunha ser o chefe do bando, que curiosamente não era um dos policias e andava desarmado. As suas palavras, que pararam a discussão subitamente, acompanharam a seguinte ação: retirou a arma do coldre de um dos policias e a entregou na mão de João. "Acho que você sabe o que vem à seguir".

Seu Fernandes, amigo de longa data de seu pai, militar aposentado, sempre de feição risonha e descontraída, agora trajava um rosto que não era seu, não podia! Tinha os olhos sérios. Era possível ver já nos seus olhos a mudança de postura. Mesmo seu sorriso, que escapava enquanto falava, saía irônico e cruel. "Preciso mesmo te explicar?"

Todos entenderam, mesmo João: seria um batismo de sangue. Seu Fernandes o conduziu pelo braço para perto do filho do prefeito que começava a recobrar a consciência. Não levantaria tão fácil quanto João, recebera uma boa surra, tinha o rosto inxado de tanta cassetada e alguns sangramentos. Os outros homens acompanharam.

Fez-se uma roda em torno do homem caído que agora abria os olhos. "Bom dia!" - Gritou seu Fernandes e todos deram risada, exceto João. "Hoje é um grande dia, não para você, obviamente" - mais risos - "Quis o destino que ganhássemos mais um companheiro e você será testemunha-chave desse grande acontecimento, não que você ou seu pai queiram entrar para a história".

Os homens se prepararam para dar risada mas se contiveram, a ironia possuia mais ódio do que qualquer outra coisa. "Vai, garoto... oras, será possível que eu tenho de fazer tudo por você!" - seu Fernandes pega o braço de João e guia a pontaria - "Aqui, bem no meio dos olhos, agora é só apertar o gatilho". João começou a tremer descontroladamente.

"Acho que você precisa de um estímulo" - seu Fernandes recuou um pouco, João congelara: não conseguia sequer relaxar o seu braço que permanecia estendido apontando a arma "bem no meio dos olhos". Pegou então outra arma e também apontou para o filho do prefeito.

"Olha, ele vai morrer de qualquer jeito, o que está em jogo não é isso, mas sim o que vai ser de você" - seu Fernandes balançou o rosto ironicamente em desaprovação e suspirou - "Filho, não estou dizendo que vou te matar, não ousaria fazer uma coisa dessas! Mas entenda que a situação é complicada, ou você está conosco... ou você não está".

A pausa no discurso deve ter sido de apenas alguns segundos, mas foi acompanhada de um silêncio tão profundo que foi possível ouvir a respiração difícil do filho do prefeito e seus gemidos pela dor de algumas costelas quebradas a cada expirada e inspirada.

"Vou fazer uma contagem, acho que assim fica mais fácil, que tal?" - ouviram-se algumas risadas e seu Fernandes deu um leve sorriso pelo canto da boca enquanto começava a contar. João não aguentava mais, sempre sucumbira a pressão. Só de pensar no ex-general armado a lhe contar os segundos de vida restante, gritou.

E atirou. Bem no meio dos olhos, como seu Fernandes havia dito. Parte do sangue lhe manchou a calça e a camisa, outra porção lhe acertou a memória por anos e anos que permaneceu clara tingida no vermelho vívido do tiro à queima-roupa.

"Caaalma, garoto" - seu Fernandes abraçou João que chorava de soluçar. "Não foi tão difícil, foi? Agora me dá a arma... me dá a ar-ma!" - não se exaltou, apenas deu entonação forte às suas últimas palavras, pois João congelara com a arma firme na mão, mas acabou entregando-a. Nessa parte, as memórias ficavam confusas.

Não sabia ao certo como voltara para casa e o que fizeram com o corpo e suas roupas ensaguentadas. Seu pai claramente ficara sabendo, passara a tratá-lo com mais respeito, de igual para igual, e algum remorso. Os estudos assumiram uma importância ainda maior, tinha de fugir daquele lugar a qualquer custo. E conseguiu, passou de primeira, mas as memórias lhe seguiram.

Terminou a faculdade, constituiu familia e fez tudo o que se espera de um homem crescido, mas permaneceu preso a sua juventude. Era muito frágil emocionalmente, todas as suas forças usava para guardar o segredo: havia matado um homem.

[Continua...]

1 comentários:

Iara De Dupont disse...

Já acordou ?
Adorei o comentário ! Vou te dizer uma coisa, adoro teus comentários, vc é uma das visitas mais bem vindas ! Me divirto muito com o que vc escreve e quase sempre concordo . Nunca gostei de blogs, mas de repente virou uma coisa gremilins,( como escreve essa porra), bom, virou isso, acabei achando pessoas tão parecidas e ao mesmo tempo tão diferentes de mim. Tem sido uma jornada incrível. beijo