Música

http://www.blogger.com/add-widget?widget.title=Megadeth Radio&widget.content=%3cscript type%3d%22text%2fjavascript%22 src%3d%22http%3a%2f%2fwidgets.clearspring.com%2fo%2f4adc6e9803694c34%2f4b33ce080a7736c8%2f4adc6e98366e230e%2f41409611%2fwidget.js%22%3e%3c%2fscript%3e

Pages

19 de junho de 2010

Sigilo Perpétuo (parte 3)

- O que foi João?

Foi uma pergunta a despertá-lo de suas próprias incógnitas. Mariana, sua esposa, se encontrava apoiada no batente da porta do escritório a lhe encarar trajando uma camisola leve de verão. O rosto inxado, os cabelos emaranhados e os anos de casamento não apagaram sua beleza ou fizeram desbotar na rotina a admiração por um mesmo rosto.

Ela era linda, foi linda e continuaria a mais bela de todas por muito tempo (só não ousava pensar em um "para sempre" para não atrair azar). Tanto tempo juntos e ainda lhe tirava o fôlego com uma frase. Perguntava a si mesmo o que havia de errado agora, porque simplesmente não tomava sua mulher pelos braços e deixava o desejo tomar conta?

Lembrou.

- Ei, fale comigo! Você está estranho... - perguntou a esposa que tinha ciência dos desejos do marido e obviamente se utilizava disto para satisfazer aos seus. Mas, por algum motivo, encontrava o marido ainda mais distante do que o usual, que já era muito. Aprendera a amá-lo apesar ou até por isso. Gostava de ser a rocha do casal.

- Tenho uma coisa para falar contigo, é melhor se sentar. - respondeu, por fim, João

-São quatro e meia da manhã e você quer conversar?! - fez cara de manha, Mariana - é bom que seja algo muito sério. Ah não! Que boca a minha! Desejando problema... que boba eu estou sendo. Vai, me diz, o que acontece, querido?

- É serio, Mariana! - falou um sério João

-  O.k. o senhor João tem a minha atenção - ironizou Mariana por não estar acostumada a ser chamada pelo nome inteiro há muito tempo. Se sentou, por fim.

- Nos tempos da ditadura... - João tomou fôlego, engoliu seco e optou por começar pelo começo, como fazia quando tentava entrar em um assunto difícil.

- Sério mesmo?! - Mariana já estava frustrada pela pouca atenção do marido e não se sentiu muito disposta a falar sobre a ditadura às quatro e meia da manhã, naturalmente - Jô, você vai ter que ir direto ao ponto dessa vez porque, olha, são...

- E-eu.. matei uma pessoa! - João desabafou de uma vez.

- O que?

- Ora, você queria que eu fosse direto ao ponto e eu fui! Satisfeita?! - Na confusão de sentimentos advindos do desabafo, desacarregava a sua raiva em sua esposa.

- Mas... - Mariana ficou perplexa, ia perguntar algo, mas não sabia o quê. Percebia pelo olhar do marido que ele falava sério e não teria muito uso perguntar se era verdade. Fosse qual fosse ela, era óbvio que ele realmente acreditava ter tirado a vida de outra pessoa.

Um silêncio se seguiu, João era péssimo com eles, mas, pela primeira vez, estava em paz consigo. Não em uma completa paz, seu crime ainda lhe pesaria a alma para sempre ( e este "para sempre" valia a pena azarar com esse pensamento), mas uma que lhe permitiria esperar pela ação de sua esposa. Não aguentava mais suas pequenas explosões, teve de revelar o segredo.

Mariana percebeu a calma do marido, o que a deixou ainda mais nervosa e propensa a acreditar no que havia sido dito. Guardar um segredo desses justificaria a inconstância do marido que muitas vezes beirava o desespero. Era hora de falar a respeito.

- ... quem? - foi difícil, mas, por fim, Mariana escolheu com qual pergunta começar. Outra pergunta que tiraria o fôlego de João que logo se pôs a contar a longa história do ocorrido que tomou uns bons vinte minutos entre intromissões ansiosas da esposa, que custava a entender, e distrações suas, que explicava o porquê de cada movimento seu.

- ... e por isso eu nunca quis apresentá-la aos meus pais - optou o contador de histórias por encerrar sua confissão com essa frase. Não poderia acabar com o "matei uma pessoa", pois seria repetitivo, a história começou desse jeito. Distrair-se nesses detalhes técnicos lhe permitia se desligar da gravidade do acontecimento. Sentia-se leve.

A esposa se horrorizou com a naturalidade de João e se esquivou da mão do marido que procurou a sua que repousava em seu colo após constantes vezes taparem-lhe a boca em sinal de espanto e aflição nos momentos críticos do relato.

- Isso é muito para mim! - Mariana desabafou e se preparou para levantar enquanto iniciava um choro discreto: não conseguia olhar diretamente para o marido, não o reconhecia. Sua insegurança era falsa, tudo se devia ao fardo do segredo; seu bom coração era corrompido, já foi capaz de matar, atirar "bem no meio dos olhos"

- Foram tempos difíceis, o momento foi crítico, você tem que entender... - João segurou a esposa pelo braço enquanto esta levantava, frustrou seu movimento e a conduziu de volta ao assento. Ainda não lhe olhava diretamente nos olhos, mas parecia disposta a estar ali no mesmo cômodo que ele. Interpretou isso como bom sinal.

- Faça-me entender, João! - a esposa desconsolada já começava a chorar, mas tentava abafar sua exaltação para poupar a filha que dormia. Era doloroso estar ali no mesmo cômodo que seu marido, mas sempre encarou as coisas de frente.

- Um regime excepcional revela uma parte excepcional de nós, um regime violento traz violência... - a calma de João horrorizava até mesmo a ele, conseguia racionalizar livremente pela primeira vez em muitos anos. Estava de fato livre. Mas sabia que de nada adiantaria essa liberdade sem seu casamento que agora tentava salvar.

- Exatamente, ele revela! Atravessei a mesma conjuntura que você e nunca cheguei a... nunca fiz algo assim! - exitia certa raiva, certa frustração na réplica de Mariana. Esperava alguma arrependimento no marido, mas o único que ele carregava parecia ser o de não ter compartilhado o seu feito antes. Um alívio repugnante.

- Não eramos todos heróis, Mariana! - O medo de perder a esposa deu lugar a sua angústia antiga, a der feito o que fez.  Voltaram seus auto-questionamentos, suas inseguranças, o medo de enfrentar o juízo de seu crime. Sentindo-se acuado, lançou seu contra-ataque desesperado em palavras cobertas por uma falsa furia.

- E tão pouco eramos todos assassinos! - a esposa genuinamente enfurecida, e agora satisfeita por ter tocado em uma ferida vendo o rosto do marido empalidecer, retrucou. Para vê-lo agir de acordo com seu assassinato, carregar de volta o fardo, bastou que trouxesse à tona a palavra. Chamou-lhe de assassino, concretizou seu pior medo.

-N-não tive escolha, seu Fernandes estava com... - era duro ter de se justificar agora.

- Você também estava armado, aposto que em nenhum momento lhe ocorreu atirar em quem de fato merecia. Sei que não somos todos heróis, você era um homem comum, mas um homem armado. E atirou no único que não podia se defender!

- E-eu... - "realmente não tinha pensado nisso", ele não ousava dizer, mas era verdade. Estranhava a crueldade da esposa. Agora era ele a ensaiar um choro calado, trocaram-se os papeis, era ela a dar as verdades e ele a ter de lidar.

- Antes fosse apenas um assassino, mas você é pior, você é covarde!

- Pare, não há necessidade disso... - João não entendia, se desperava

- Vou embora dessa casa, não consigo nem olhar para você! Cheguei a ter medo de cohabitar com um assassino, mas agora vejo que o problema é o nojo de viver com um rato! Se sente acuado e logo ataca, por que me contar isso agora? Por que quis, por fim, dividir a sua vida por completo com sua esposa ou por que cedeu à pressão? Matou um homem, cedeu aos seus princípios, você não é assassino, você não é nada, você...

- Chega!

João acordou suado e ofegante, era mais um pesadelo. Não eram raros, a novidade era o sono irregular, talvez por culpa dos comprimidos que agora tomava. A tv do quarto noticiava que de fato o presidente sancionara a tal lei e o café no criado-mudo confirmava sua visita à cozinha. A linha entre pesadelo e realidade fora parcialmente apagada.

Dessa vez, literalmente. João vivia seu pesadelo: o segredo ainda lhe acompanhava, e, logo mais, ainda teria de trabalhar. Esticou o braço para pegar a caneca de café dormido, mas foi interrompido por sua mulher que lhe agarrou o braço de seu lado da cama.

- O que foi? Mais um pesadelo? - a mais bela lhe perguntou.

- Não é nada, volte a dormir - João carinhosamente beijou a testa da esposa e velou seu sono no silêncio do segredo que ainda permaneceria. O sigilo não seria perpétuo, no que dependesse da lei, mas decidiu que daria a sua vida para que alguém naquela cama ainda tivesse bons e lindos sonhos por muito tempo.

0 comentários: