Theobaldo estava sozinho agora e, por algum motivo, isso parecia incomodá-lo. Era um sujeito arisco então poderia se dizer que por força da experiência fora treinado para a solidão já que, em algum momento de nossas vidas, e aqui falo daqueles que não acabam por enlouquecer, atingimos a maturidade pela aceitação do nossas condições mais profundas que se tornam essencialidades, quase permanentes. Theobaldo era só, não poderia se incomodar com a solidão, mas essa lhe subia pelo corpo como uma coceira - não conseguia ficar parado. Por fim, decidiu ir atrás do amigo (como se fosse uma escolha...).
Percorrendo o andar que recobrava o seu ritmo habitual, tendo já alguns de seus colegas retornado às suas baias adiantando o serviço, fazendo ligações e atacando as teclas nos computadores, Theobaldo procurou pelos focos remanescentes de conversas. Sabia que as portas das salas dos diretores costumavam ser os pontos de maior concentração nesta altura do campeonato, pois instintivamente percebiam os funcionários que era prudente saber até onde esticar o comportamento informal pela postura daqueles que, não sendo propriamente exemplos morais, seriam ao menos responsáveis pelo juízo de certo e errado.
Estava agora o solitário a menos de três metros de um grupo de pessoas, dentre elas, Francisco. Tendo visualizado o amigo, fez sua aproximação de forma sutil acabando, por descuido, de se enfiar entre os ombros de dois diretores para entrar na roda de conversa. Houve um breve silêncio de Marisa, que no momento de sua chegada tinha a palavra, para depois a conversa reiniciar já na voz de outra pessoa. Estavam falando de mim - era-lhe inevitável o pensamento. Theobaldo resignou-se com o fato de que não era bem vindo e partiu tentando trocar olhares com o amigo, mas este não desviara o olhar do falante do grupo fazendo de seu interesse patente através de pequenos gestos corporais, inserções monossilábicas e pequenos comentários. Corno! - resmungou consigo o enjeitado.
Theobaldo estava de volta a sua baia cumprindo aquela que havia estabelecido como meta do dia procurando sempre fazer o mínimo necessário. Não havia uma cobrança pontual sobre seu serviço, mas uma espécie de cota mensal para o todo o setor que, estando satisfeita e o moral da equipe intacto (excluindo-se eventualidades que provoquem redução de custos), mantinha a empresa longe da marcação homem-a-homem. Coisa da nova direção, Theobaldo sabia muito bem da onde vinha esse ideal relembrando um artigo dessas revistas empresariais que idolatravam o vale do silício onde tudo é lindo e todo mundo feliz, produtivo e rico em uma rotina de trabalho mais solta. E, claro, nem um pio sobre os assédios morais na Apple ou os suicídios de funcionários na Foxconn que fizeram a empresa ter de colocar grades para evitar o "incidentes". Todos hipócritas - concluiu o trabalhador virtuoso que combatia os males do mundo corporativo jogando Paciência no computador.
O tempo não passava, correram apenas dez minutos em rodeios intermináveis de pensamentos sobre a hipocrisia do mundo, das empresas que colocam meia-duzia de funcionários para a vitrine do mundo e fecham os olhos para os crimes contra os terceirizados... e das mulheres que se vestem e agem de forma provocante, mas querem ser tratadas de forma "neutra". As incongruências entre comportamento e expectativa, entre imagem e realidade, lhe assombravam e lhe fugiam ao conhecimento como um livro fora da estante para quem tem TOC. Era insuportável! Já cansado de olhar a barra piscando no documento de texto em branco (de algum relatório que deveria escrever) e tendo enjoado de enrolar na Paciência, Theobaldo percebeu então que, por mais que não entendesse o porquê, sabia exatamente o que deveria ser feito.
Decidido e já meio arrependido pelo o que viria a seguir, levantou-se num pulo da cadeira de rodinhas que recuou uns bocados e já ia invadindo o corredor. Recolocou-a então em seu lugar com uma calma e delicadeza que não eram suas, muito menos naquele momento, e marchou em um passo apressado, sem nem correr ou andar, em direção ao grupo que há poucos minutos deixara. Ao aproximar-se, reduziu a velocidade, respirou fundo e tocou gentilmente o ombro de Marisa:
- Com licença, anteriormente fiz um comentário que possa - olhava agora para Francisco, fazendo breve pausa na fala, esperando alguma reação, mas este permanecia indiferente a sua presença - que deve ter te ofendido de algum modo - seu amigo já o olhava - enfim, minha conduta foi imprópria e espero que, mesmo que não aceite minhas desculpas e tenha já uma opinião formada sobre mim, que isso não te influencie sobre o que pensar dessa filial ou mesmo dessa cidade. Desculpem-me então você, pela grosseria de antes e os senhores pela de agora ao interrompê-los - agora mirava os rostos perplexos do grupo e o de Francisco que segurava um sorriso tranquilo - Boa tarde - e saiu com a mesma pressa com que chegara.
No caminho de volta para a baia, decidiu pegar o elevador e descer ao térreo para fumar. Queria pensar um pouco, ou até deixar de pensar, espairecer. Tentava entender porque houvera feito aquilo não havendo necessidade de reparação para um ato sem culpa. Fez pelo amigo, concluía já, talvez por confiar no juízo dele, sendo óbvia sua decepção, mesmo sem entender direito aonde fora seu engano; talvez pelo receio de ficar só ou ainda talvez pela necessidade imediata de ter alguém para ir ao clássico do domingo. Fosse como fosse, ao riscar o fósforo e acender seu confessor pelos próximos minutos, sentia uma inescapável vontade de soltar de si para si com a fumaça da primeira tragada uma resmungo ensaiado:
- Que tremenda viadagem!
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