- Festa de empresa é uma merda - lamuriou Theobaldo se arrastando pelo quinto andar fantasiado de festa naquele edifício sóbrio do centro da cidade.
- Não é tão ruim assim - consolou Francisco de boca cheia raspando as sobras de bolo de seu pratinho de plástico.
E ficaram os dois a conversar aonde, em dias normais, seria a sala de reuniões, perto do bolo um pouco depois do parabéns (rito que se tivesse slogan seria algo como constrangendo vocês desde... e daí teu ano de nascimento) dos aniversariantes do mês. Quem visse os dois adultos lutando com garfos de plástico no meio de balões coloridos forçando um sorriso daqueles que forçamos quando em festas infantis para não atrapalhar a diversão dos pequenos (com a diferença de que nesse caso as crianças não chegariam), concordaria que, se não "uma merda", a situação era no mínimo ridícula.
- Nem sei o que esse filho da puta faz e nem seu nome até agora pouco - dizia Theobaldo apontando o quadro dos aniversariantes do mês com o garfo.
- Calma, cara! Pensa positivo, com isso a gente ainda queima umas horinhas do expediente - retrucou o amigo calmamente jogando o pratinho no lixo, gesto repetido pelo outro e então lambendo os dedos (Theobaldo preferiu os guardanapos na mesa) - olha, vou te apresentar alguém - e com essas palavras partiu sem mais justificativas para fora da sala, avistado pela janela que dava para o interior do edifício de venezianas semi-cerradas sendo possível percebê-lo a se juntar a um grupo de pessoas indefinidas.
Theobaldo estava já há alguns anos na empresa, passou a sua segunda juventude (se é que se podem chamar assim os anos que precedem a meia-idade e sucedem a crise pós-faculdade) e teve sua formação profissional mais significativa por lá. Porém, em decorrência de sua personalidade acre, característica de que são dotados os indivíduos nunca satisfeitos (aditivo que outrora fizera dele de perfil ambicioso e criativo na solução de problemas, mas agora o redundava em fatalismo) só fizera amizade com Francisco e mesmo assim só depois de muitos projetos em parceria e uma ajudinha do destino por fazê-los do mesmo time de coração.
- E o Parmera, como vai?
- Vai mal, vai mal...
Rememorava o palestrino emocionado, não pela história de amizade que começou com essas palavras, mas pelo fato do verdão estar finalmente em boa fase. Tenho que ir mais aos jogos, mentalizava já pensando em chamar o amigo para o clássico da semana seguinte, raciocínio que interrompeu imediatamente com a entrada de duas pessoas na sala de festas/reuniões.
Ele, porte médio, meia-idade, meio careca, mas barriga inteira de chopp, gravata manchada de bolo e olhos azuis e serenos; ela, um pouco mais alta do que ele, cabelos negros, lisos e compridos e pernas longas, vinte e tantos anos (próximos aos trinta, dava para ver pelas linhas do rosto, pois segurava um sorriso nervoso), vestido vermelho pouco acima do joelho e tomara-que-caia. Podia facilmente ser apresentadora de tv ou meteorologista, pensava consigo Theobaldo.
- Então, Theo, essa é a Marisa, ela é a nova...
- Ah sim, secretária, eu sei, a Marly se aposentou, não foi?
- Theo... - deixou sair, Francisco, como um suspiro e ar de desapontamento indicando com o olhar a grisalha Marly que era avistável pela porta aberta já entrando na sala, pedindo licença entre os interlocutores para chegar a mesa do bolo e pegar seu refil.
- Diretora, sou a nova diretora-executiva - disse Marisa mais constrangida do que tentando constranger já deixando escapar o seu sorriso hesitante em uma risada nervosa.
A situação tinha um quê a mais de embaraço, pois que, por mais que Francisco se juntasse ao amigo para queimar as horas em torno do almoço na ocasião de festas, tinha uma concepção diferente de como fazê-lo. Ao passo que o amigo se restringia em passar o tempo reclamando, ele tinha de seus lampejos e se metia no tal do networking fazendo contatos e remendos em relações desgastadas para facilitar depois o trabalho desenvolvido o tornando portanto mais suportável. Sendo assim, tenha em mente, caro leitor, que Marisa não só ocupa um cargo de importância para a empresa, mas provavelmente de interesse direto para os dois amigos. Tensão palpável e, se apercebendo disso, Marly saía discretamente pela tangente. Enfim, continuemos.
- Ela veio da filial de Belo Horizonte, nem dá para perceber o sotaque, não é? - vendo que a oportunidade profissional implodira, Francisco tentava o controle de danos falando de amenidades.
- Não, e na verdade eu nem sabia que a gente tinha uma filial lá! - disse o produtor de gafes debochado, quase dando risada.
- É, lá desenvolvemos um trabalho de... - introduzia-se a moça enquanto os lábios de Francisco, que estava do lado da moça não podendo ela vê-lo sem curvar o pescoço, diziam silenciosamente, mas em entonação pausada e clara: Porra, Theobaldo! - ... com ênfase em negócios internacionais... - e lá ia a porra do Theobaldo checando a moça de cima a baixo sob o olhar de inconformação do amigo que já beirava o horror - ... e, para tanto, o diretor regional propôs minha transferência e eu aceitei.
- Muito interessante, mas fale mais de você! - disse o cínico arqueando as sobrancelhas simulando interesse de forma mais artificial que a atuação do Alexandre Frota na novela do SBT.
- Como é?! - reagiram Marisa e Francisco em uníssono, ele, já horrorizado e convencido de que nada de bom sairia de lá; ela, absolutamente constrangida, mas sem ainda saber o que esperar.
- É, faculdade, cursos e etc, sabe? Como o seu objetivo profissional se encaixa com o atual projeto na qual foi envolvida. Onde entra você nessa história toda?
Havia uma aparente civilidade na pergunta e o equilíbrio daquele ser bruto em produzi-la pegou novamente os dois de surpresa o que fez Marisa cometer o erro de continuar a conversa e Francisco a insensatez de não intervir ainda sendo clara a instabilidade do cenário. E foi ela falando mais sobre o projeto que encabeçava enquanto os dois acenavam a cabeça em intervenções muito pontuais e breves, um torcendo para que acabasse logo, o outro esperando a chance de dizer algo que um torcia para não chegar. Até que a mulher foi mordida por um pernilongo vindo de sei-lá-onde e soltou:
- Pernilongos me devoram, sou perseguida por eles - percebeu o que falou e já se preparava para o inevitável comentário de que "seu sangue é doce". E tudo bem, ela gostava de clichês.
- Não me admira, todos querem te chupar! - e, aquele-que-nem-preciso-dizer-quem, sorriu para o outro, satisfeito e erguendo as sobrancelhas. Não demorou até que ela (que demorou uns bons segundos para processar o que havia sido dito e chegasse ao é, foi isso mesmo) saísse enfurecida mastigando palavrões.
- Ela queria o quê vestida dessa forma?! - indagou o cínico a mais um que saía da sala de gafes/reunião. Agora, pensativo, tentava deduzir aonde fora o seu engano.
[continua...]
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