O abraço de Geraldo era apertado, sufocante no odor misto de pós-barba e cigarros. Seus braços "felpudos" (peludos, grandes e fofos como os de um urso), braços estes que tantas vezes antes foram um alento, agora sufocavam. "O velho está ficando sentimental" - pensou Liz ao se afastar do homem caído que a abraçava, estando ela de joelhos ao lado de seu corpo estendido. Não demorou muito, puseram-se de pé tentando entender/explicar o que houvera acontecido. Geraldo jurava a sua filha que tinha apenas caído no sono e, dessa vez por alguma infelicidade, caído literalmente. Liz queria mesmo era levá-lo ao médico, pois ele estava em um "idade complicada" em que era "melhor não arriscar", colocações essas que não só o ofenderiam mais se a jovem ainda o fizesse ponderar sobre a "condição" dele. Ela bem o sabia do quanto mexeria (ainda mais) com o brio de seu pai orgulhoso se assim o fizesse, guardando dessa forma toda a cautela para si acatando com o desejo de Geraldo de voltar para casa sem fazer "tempestade em copo d'água".
Desde que se acidentara trabalhando pela companhia, supervisionando alguma obra, não tinha certeza (ela sabia que ele era engenheiro), já não era mais o mesmo. E Liz o sentia mesmo sem se lembrar muito bem de antes do acidente. Era muito pequena, deveria ter uns cinco ou seis anos, e as lembranças do pai saindo para trabalhar remexiam na cabeça como um lago agitado impedindo a vista do fundo. Por isso, pareciam-lhe fabricadas, criadas pelo desejo de ter algo guardado dessa época. A menina já crescida acreditava, ou queria acreditar, que o via sempre sorrindo como em um comercial de margarina abraçando e beijando ela e sua mãe. Mesmo sem investigar o passado remoto, Liz enxergava um sorriso difícil do semblante sempre tão sério de barba malfeita do engenheiro aposentado, um ar de descuido, um sorriso partido, quebrado, apagado e concluía: havia algo ali que agora se foi.
De volta ao apartamento, Liz esperava com o pai por sua mãe, essa que pregava tanto aos dois que se entreolhavam constrangidos na sala de estar sobre a importância de estar presente. Ironia? Hipocrisia? Nem tanto, ela trabalhava e eles (uma estudante e um aposentado) não, mas Liz não deixava de achar isso engraçado e soltava um sorriso nervoso ao olhar para seu pai ao que este lhe retribuiu. O silêncio continuava, nada incomodava mais a jovem, daí que sempre mantivesse um dos fones de ouvido de seu celular. Quando foi levar o fone ao ouvido, ouviu Geraldo pigarrear. Alguns minutos passados, sendo o som de seu player stereo, ocorreu-lhe que a parte boa da distribuição sonora da música estaria melhor no outro fone e foi trocar, mas se distraiu com um pigarro muito alto de seu pai. "O que será que ele tem? Deveríamos ter ido ao médico" - pensou.
Geraldo estava desistindo de esperar, parecia ter passado de constrangido para de saco cheio subitamente e já dizia a filha que tudo ia ficar bem e que a mãe chegaria em breve. Liz não queria que seu pai partisse, mas pouco admitia para si mesma e dificilmente se denunciaria ao pai pedindo a ele que ficasse. Era criancice, carência, reprovável. "E o que eu vou comer?" - soltou ela para encobrir seus rastros, impondo um problema que o obrigava a permanecer. Porém, Geraldo pareceu entender como extorsão, pois tão logo ouviu a indagação da filha, abriu a carteira e já ia puxando duas notas de vinte. "Que tal uma pizza?" - disse a ele, já com as notas erguidas no ar na direção da filha. Liz não era de dar sugestões, uma assídua frequentadora de um "tanto faz". A aparente angústia daquele senhor logo se dissipou, deu lugar a um olhar interrogativo muito raro à um homem de tantas certezas. E foi tudo o que ela precisou, pois não sendo provável que ela pretendesse ou pudesse comer uma pizza inteira, era um convite subentendido para jantar.
Uma hora depois, os talheres já tintilhavam nos pratos e não demorou até que a dona do lar regressasse. Já era noite, mas o meio-turno que fazia aos sábados vez ou outra se estendia o que, apesar de corriqueiro e até esperado, não fazia com que Liz deixasse de esperar que chegasse sempre no horário originalmente previsto. A adolescente devaneava enquanto, depois que todos já haviam se servido, pai e mãe, marido e ex-mulher, lavavam a louça juntos como talvez tivesse sido em algum tempo e talvez ainda fosse em algum mundo perdido de lembranças e sonhos: mais difícil do que admitir que queria seu pai presente era o desejo de que ele se reconciliasse com sua mãe. Ela que nessas horas não se sentia tão adolescente, mas uma verdadeira criança, quis chorar: não de tristeza, mas de felicidade; se conteve.
Em seu quarto, já na posição de costime perto da janela, esperou alguns instantes depois da despedida de seu pai (um beijo no rosto um pouco antes na cozinha) até que pudesse vê-lo no carrinho subindo a longa rua, pra além da pracinha, pra além do condomínio lá na avenida principal. Via ele diminuir diminuir e só então assumiu a despedida. "Tchau, papai" - disse a si mesma enquanto a garganta secava, colocou o outro fone de ouvido e aumentou o volume. Como era insuportável aquele silêncio!
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Recado breve aos leitores. Bom, alguns (todos os que leram) devem ter percebido a ligação com o conto anterior. Minha intenção era a de que ambos funcionassem independentemente, mesmo sem a comunicação discriminada, por isso não falar em parte 1 e parte 2. Quem leu este antes do primeiro pode até comentar, depois de ler o outro, se ele realmente se sustenta e até quem leu o primeiro pode dizer se tinha a impressão de algo inacabado... o que me sugeriria em posterior publicação se devo colocá-los juntos como um conto só ou não. Ah sim! Confesso também que quero escrever ainda um terceiro conto sobre esses dois. Aguardem!
Espero que tenham gostado!
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