Os cabelos de Liz desciam-lhe pelos ombros, lisos, negros e brilhantes. De lá, caiam então por cima da blusa aberta de zíper azul do colégio e tampavam o emblema da camiseta branca que também compunha o uniforme. Ela estava sentada junto à janela, abraçando os joelhos, iluminada pelo entardecer, uma luz dourada que, unida ao branco dos fios de seu fone de ouvido que lhe escapavam por entre os cabelos que tampavam as orelhas, dava um tom amorenado a sua pele clara e brilho aos seus olhos castanhos cor de âmbar.
Seu pai, agora junto a porta de seu quarto e enervado, já havia lhe chamado três vezes, mas a música provavelmente impedira a jovem de ouvir. Tinha quinze anos, a beleza e o viço da juventude... bem como problemas, agora, por sua desatenção. Seu olhar contemplativo então lentamente se desviou da janela para encontrar a figura junto à porta do quarto que a janela iluminava. Pelo pequeno cômodo, produziam-se sombras diversas por entre o monte de coisas que ela pouco precisava. Chamou-a mais uma vez, quando seus olhos por fim se encontraram, gritando à plenos pulmões. Nome completo, pra deixar claro que era sério.
Geraldo olhou para o rosto assustado de sua filha e viu como a surpresa de seus pequenos olhos arregalados dava logo lugar a uma irritação nos lábios crispados, um ar de protesto consolidado na atitude de remover apenas um dos fones de ouvido (o da orelha esquerda que, enquanto de perfil, dava para a direção de seu pai e o outro para a janela); para provocá-lo. Enquanto conversavam, ela variava a posição, ora o olhava de perfil de um lado, ora de outro, o perfil errado - com o fone da música alta (se é que se poderia chamar aquilo de música); mais provocações, tinha certeza. Por fim, saíram os dois.
Saíam de sábado, nem que fosse para dar uma volta na praça, era esse o combinado. A mãe de Liz e ex-esposa de Geraldo achava que fazia bem que os dois tivessem esse elo, constância, coerência, "não basta ser pai, tem que estar presente" - era o que dizia. O engenheiro aposentado não concordava totalmente, mas cumpria o acordo a risca... ainda que caminhasse com dificuldade, pois havia anos uma rocha achatara os dedos de um de seus pés; sua filha impaciente o ultrapassava constantemente. Como que também no sentido de unicamente cumprir o acordo, parecia se excitar com a meta de dar uma volta completa na pracinha a frente de seu prédio e voltar para sua janela. Era óbvio para ele que a filha não queria estar ali e isso partia seu coração, daí que não fizesse questão dos passeios, que bastassem a pensão gorda, o convênio, as aulas de guitarra, que bastasse a vigia silenciosa do bem estar da jovem sem ter de lidar com todo o seu desprezo; mais fácil.
Liz era baixinha, um pouco gorda, e tinha as pernas curtas; andava engraçado quando tinha pressa. Vez ou outra o olhava por trás dos ombros quando o ultrapassava (pois o manco tentava sempre manter o passo da filha por uma questão de orgulho sendo depois fatalmente deixado para trás quando cansado do esforço necessário para tal) e esse era o contato visual que mantinham. "Como vai a escola?" - foi tudo em que pode pensar; "normal" - parecia tudo o que ela era capaz de dizer, dentre outras colocações igualmente lacônicas. Geraldo sabia que se quisesse extrair algo dela, qualquer coisa que fosse, seria por xeretar o blog que a filha mantinha na loucura de Liz de esconder-se de quem está (ou estava) no quarto ao lado e revelar intimidades ao mundo, ao mar de anônimos da esfera virtual. Anonimato, talvez fosse essa a questão; sua presença a constrangia.
Novamente a sensação de que não deveria estar lá. "Ser pai é complicado" - pensou Geraldo que agora se perguntava se algum dia se sentiu pai. Lembrava então de seu primeiro pensamento ao ter a filha nos braços no centro cirúrgico. "Então é isso?" - não parecia um ser humano, não parecia com ele, era feio e barulhento. Liz agora era uma linda moça e Geraldo sentia um orgulho estranho por isso, mas sem perder a estranheza com aquela com a qual deveria partilhar um invencível elo de sangue. Deixou de ser algo para se tornar alguém, alguém linda, esperta... e que o odiava. Era muito complicado para o engenheiro, sua filha e seus textos tristes não possuíam sentido; poder acessar aquilo que ela pensava não era nem de longe uma facilidade na comunicação dos dois, a tornava antes inexorável.
Sua filha não era como as jovens das séries de tv que tanto assistia entediado por sua aposentadoria precoce, nem aos livros que lia por deboche pra provocar os antigos companheiros de trabalho (ao estilo, "olhem só como eu tenho tempo livre!")... e até pra entender um pouco melhor as novas gerações, uma espécie de estudo de campo. Liz parecia "curtir" pouco a vida, era melancólica e fazia corpo mole pra tudo. Tanto o era que, se antecedendo ao pai manco, aparentemente cansada, interrompeu a caminhada pouco antes de completar a volta e pediu um suco do quiosque de coisas naturebas (e caras). Foi com imensa felicidade que Geraldo atendeu ao pedido se sentando em uma das cadeiras de plástico da calçada que nunca lhe pareceram tão confortáveis (estava exausto, ainda que não admitisse). Deu o dinheiro a filha e pediu que trouxesse dois do que quer que pedisse.
Esperando a filha, no que não devem ter sido mais do que uns poucos minutos, Geraldo adormeceu contando contas e problemas na cabeça. Nem era tão velho, mas tinha esse mal hábito (ou facilidade) de dormir aonde encostasse dependendo do cansaço. Sonhou com tigres, ou achou que sonhou, achava sempre que sonhava por menor que fosse o cochilo, até ser sacudido violentamente pela filha. Liz estava assustada e, pela sua cara, deduzia-se que houvera suspeitado que tivesse morrido, o que o deixou profundamente ofendido e atento ao ruído de ambulâncias. Uma lágrima escorreu pelo rosto oleoso da adolescente o que subitamente lavou as ansiedades do pai carrancudo: ela se importava. Geraldo então a abraçou e agradeceu a Deus pelas visitas de sábado.
Estar presente, afinal, fazia toda a diferença.
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