Música

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6 de agosto de 2012

O Homem que Devorou a Montanha (final)

Na noite seguinte, sem grande assombro se percebeu notável facilidade em levar Liz, conhecida por "elétrica" por seus avós pelo vigor que possuía, para a sua cama. Bastou que seu pai lhe dissesse para se aprontar, escovar os dentes, os cabelos, colocar o pijama e ir para cama que ele lhe contaria o restante da história que lá estava ela alguns instantes depois com a parte de cima do pijama do lado errado lhe apertando o pescoço, resto de pasta de dente no canto da boca e cabelo todo embaraçado. Geraldo fez questão de fazer o que pode, a mãe dela ficaria louca se a visse, enfrentando grande dificuldade logo vendo na relutância da filha em receber qualquer ajuda que nem um pouco de sua energia havia sumido, muito pelo contrário...

- Tudo bem aí, papai? - perguntava do quarto do casal a sua esposa em tom jocoso ao ouvir os barulhos de sua filha descendo e subindo na cama através da parede.

- Tudo sim, mamãe, fica tranquila - retrucou Geraldo torcendo para que isso bastasse, sabia que nem precisava se esforçar muito, pois embaixo das cobertas, a exausta esposa aguardava a novela acabar para assistir a um filme na tv e, pela experiência, este sabia que ela logo estaria dormindo antes mesmo de subirem os créditos. Dito e feito: já era possível ouvi-la roncar antes que conseguisse aquietar a sua filha.

- Então, Liz, o que vai ser. Quer ouvir essa da princesa? - provocou Geraldo puxando um livro grande, rosa e cheio de gravuras que a filha insistira para que fosse lido na noite anterior, pedido este ignorado substituído-se o dito livro pela história que já nos é conhecida.

- A do pirata! A do pirata! - protestou a filha pulando no lugar e balançando as cobertas.
- Você quer dizer a d'O Homem que Devorou a Montanha? - corrigiu o pai se sentindo um pouco frustrado.
- Essa! Essa! A que tem um pirata! - insistiu a menina.
- Tá mas ele não o princi... ok, vou continuar a história do pirata - concordou Geraldo tendo em mente que as vezes era preciso escolher nossas batalhas e essa... ele realmente não tinha como ganhar.
- Eeeeee!

- Muito bem, onde estávamos?
- Na parte do pirata! Na parte do pirata!
- Tá, então o pirata chegou, ficou bravo com Nestor e foi embora.
- Por que?
- Porque ele gostava da montanha.
- Por que?
- Porque tinha um bocado de coisas legais lá.
- Por que?
- Porque montanhas.. há-há, muito engraçado, pare de rir, você pegou o papai. Vou continuar...

Sozinho em sua cabana, Nestor se colocou a pensar pela primeira vez que o que fizera poderia ser errado. Não percebeu na hora, não havia nenhuma placa que dissesse que era proibido comer a montanha e Jerry, seu amigo pirata, nunca lhe alertara sobre o quanto lhe ofenderia se o fizesse. Ainda assim, diante do descontentamento do amigo e por isso sozinho novamente era impossível que estivesse certo o que muito o amargurava: não tinha como julgar suas atitudes como corretas sendo que magoara tanto outra pessoa. Seu consolo, depois de assumir o erro, passou então a ser o de que, como bem lembrava, não havia nada que o tivesse alertado antes de fazer aquela besteira, foi um acidente, não tinha culpa. Ele não sabia! No dia seguinte, para sua surpresa, recebia uma segunda, inesperada e inédita visita. Acordou bem cedo com batidas fortes a sua porta tendo de atender ao convidado de roupão e barba embaraçada. Era um garotinho que lhe batia na altura da barriga.

- Oi
- Olá, bom dia! O que deseja, meu jovem?
- Quero saber se o senhor sabe da montanha. Eu moro lá, sabe? - o garoto apontava uma casa no topo de uma árvore que, agora sem a montanha, era possível avistar bem ao longe através do descampado com o auxílio de uma luneta que o menino prontamente forneceu - e eu brincava muito nela. Sinto falta.
- Ah sim! Eu comi.
- Todinha?
- Tudo tudo.

Nestor que estava ainda um pouco sonolento por ter acabado de acordar teve um despertar instantâneo que nem mesmo o café mais forte lhe daria. Culpa de uma dor lancinante em sua canela: levara um chute. Contorcido de dor, esticou a cabeça pra forna da cabana e espiou o menino correndo em meio ao que pareciam soluços; provavelmente estaria chorando. O pobre arrebanhador de ovelhas, que não raro tropeçava em rochas ao caminhar pelo campo, agora se recompunha pensando que, de todas as provações da vida (e ele certamente tinha uma longa história), pancadas na canela eram certamente uma das piores e que nunca se acostumaria com essa dor. 

Entretanto, o sentimento de culpa, assim como chutes na canela, também não era nada fácil e parecia-lhe insuportável que tivesse irritado mais alguém com sua comilança. Por esse motivo, decidiu investigar: atravessou o imenso descampado (depois de colocar um band-aid onde o menino lhe ferira) mancando um pouco e descansando algumas vezes na longa travessia. Logo, Nestor estava em frente a casa na árvore do menino e o convenceu a conversar depois de grande relutância. Tomas, esse era o nome do garoto, aos prantos contou-lhe a sua história, de como se perdera de seus pais em naufrágio a um ano e como se cuidava sozinho desde então usando de coisas encontradas na montanha, tendo como maior e talvez única diversão um barranco que, em dia de chuva, ficava lamacento o suficiente descer deslizando em cima de um pequeno trenó. Era seu tobogã particular e, dependendo da lama, deslisava montanha abaixo mesmo sem o trenó.

- Peter Pan!
- O que, filha?
- Peter Pan! Ele é um menino perdido não é, papai?
- Ah.. - Geraldo agora entendia, depois de falar em piratas, órfãos e ambientar tudo em uma ilha, a comparação era simplesmente inevitável - não, não é Peter Pan.
- Quando aparece o crocodilo? - insistiu a menina, parecendo ignorar as palavras do pai.
- Não tem nada a ver com Peter Pan, ok?! - retrucou elevando um pouco o tom de voz frustado com o pensamento de que todo o sucesso de sua história não tivesse mérito algum, que fosse mera sombra ou eco de história já contadas. Sua correção, no entanto, assustou Liz que já ensaiava o choro tremendo o lábio inferior, soluçando e puxando o ar com dificuldade. Era preciso engolir o orgulho e decidir: afinal, quem era a criança ali?

- Desculpa, princesa! Papai não fez por mal, não estou bravo com você é que as vezes fico estressado com o trabalho e... - Geraldo lentamente acalmou a filha até que ela se deixasse ser abraçada sem o empurrar com os pequenos bracinhos soltando um urro estridente. E assim, esperando os ânimos acalmarem, sejam os dele em sua negação enérgica das similaridades acidentais com o clássico infantil; sejam os de sua filha assustada, foi delicadamente retomando a história - quer que eu continue a história, meu bem? Ótimo! Vamos lá...

Nestor estava de volta a sua casa, pensativo e preocupado. Se antes era apenas uma suspeita de que tivesse errado em comer a montanha, agora lhe caía como certeza e passava a esboçar arrependimento pensando consigo que se qualquer um mais lhe perguntasse acerca do paradeiro da montanha já não contaria mais com a mesma leveza em um quase orgulho pelo feito. Não, pelo contrário, o mais provável era que ocultasse, que dissesse cinicamente "que montanha?" ou ainda "puxa, é mesmo! quem será que fez essa coisa horrível?". Mas de pouco ou nada ajudava pensar nisso, pois àqueles que talvez devesse ter mentido, já não havia como guardar segredo. Seu vizinho e seu grande amigo, ambos adoradores da boa e velha montanha, estavam sabidos. O que fazer?

O raciocínio parecia óbvio: para o problema, uma solução. O arrebanhador de ovelhas que também tinha seu talento com as ferramentas logo pensou em consertar tudo da melhor maneira que pudesse: iria devolver a montanha aos seus amigos. E assim foi ele trabalhando a solução em partes tentando devolver tudo aquilo que havia sido perdido. Para ajudar o navio pirata a encontrar a ilha sem a montanha construiu um imenso farol; para substituir os banhos quentes das termas e mesmo a hidromassagem nas pedras, coisa que ele mais do que Jerry gostava, construiu uma grande banheira onde caberiam todos os seus amigos, piratas ou não; para compensar as muitas delícias que se escondiam pelas montanhas, vasculhou o descampado em busca de frutos e sementes e, onde não os encontrou, foi a ilhas vizinhas com seu pequeno barquinho para ter com o que plantar árvores que descem uma grande variedade de  frutos; e, por fim, para substituir o perigoso e imprevisível morro de barro que Tomas deslizava em dias de chuva, construiu um enorme tobogã.  A coisa levou um bom tempo para ficar pronta, tempo todo esse em que Nestor permaneceu isolado, sem falar com os amigos.

- Tudo bem, filhota? - Geraldo tentava sondar a filha, prever qualquer questionamento de como seria possível fazer tudo aquilo ou mesmo se "um bom tempo" seria uma unidade satisfatória de tempo, mas tudo o que obteve foi..
- Tudo sim, papai - Liz parecia apreensiva, preocupada com algo, mas ao mesmo tempo interessada na história cada vez mais encolhida na cama, mas ainda sem dar sinal de cansaço.
- Certo..

E assim a nova montanha de Nestor se assemelhava mais a um parque de diversões. "Puxa" - ele pensava consigo - "muito melhor do que aquela velha montanha, eles vão me agradecer!" e se punha a refletir sobre como mostrar o resultado aos amigos. Decidiu por fazer um desenho bem bonito com o farol, as banheiras, as arvores cheias de frutos e o enorme tobogã e escrever algumas palavras em um cartão: fizera um convite, uma inauguração de seu pequeno parque. Eram dois deles, estregando assim o primeiro preso em um dos galhos da casa na árvore de Tomas e o segundo, levou remando de barquinho em uma ilha vizinha onde sabia que os piratas estariam enterrando alguns tesouros e abastecendo o navio com alimentos e água potável. Não encontrando Jerry, deixou o cartão com Iago, o cozinheiro que estava na praia escolhendo os melhores cocos pra embarcar no navio, pedindo que ele entregasse a Jerry. Passaram-se dias e nenhum sinal de Tomas ou Jerry...

Geraldo teve vontade de dar risada ao perceber o que havia feito, outro plágio acidental. Deu a sua filha a oportunidade de alertá-lo, recompensaria sua atenção, quem sabe não era esse o certo? Afinal, a habilidade de fazer esse tipo de ligação certamente seria um grande avanço cognitivo notável nas crianças dentre aqueles muitos que ilustravam os livros de pedagogia de banca e jornal que sua esposa adorava. Porém, nada, nenhum sinal de que ela tivesse noção de seu deslize. Não à toa: por mais que Tom e Jerry fosse parte tanto de sua geração quanto de seus pais nas consecutivas reprises da televisão, não havia atingido a de sua filha (ao menos não significadamente). O contador de histórias ficou nostálgico com a própria história de sua vida e precisou de um tempo para se recompor e continuar.

- Tudo bem, papai?
- Tudo sim, filhinha.

Preocupado com a ausência de qualquer resposta, Nestor foi novamente até seus amigos para ver o que havia de errado sendo muito mal recebido pelos dois, seja expulso a tiros de canhão para o alto ao se aproximar da ilha dos piratas remando seu barquinho (quase tombando); seja bombardeado pelo estilingue nervoso de Tomas ao se aproximar da casa da árvore. Precisou pensar muito até perceber aonde estava errando tanto, pesquisando em sua cabeça careca todas as possibilidades que ainda não havia tentado até que, depois de um longo suspiro a balançar em sua cadeira de balanço, conseguiu entender: havia realmente uma coisa que ainda não havia tentado.

- O que foi, papai? O que era? O que era?!
- Não quer arriscar um palpite?
- Me diz logo!
- Ok, lá vai...

Nestor não havia pedido desculpas, faltou isso. Foi incrível como tudo ficou mais fácil depois que ele pediu desculpas aos seus amigos, mais incrível do que comer uma montanha inteira ou construir um tobogã gigante sozinho, se diria. Logo, já estavam todos juntos, Nestor, Jerry e os piratas e Tomas a tomar turnos pra escorregar no tobogã e a disputar para quem ligaria o farol quando anoitecesse. Brincaram, comeram e sorriram em uma alegria que a pequena ilha a muito não vira e em sorrisos que aquela barba branquíssima a muito guardava. Nestor aprendeu então que não importando o tamanho de nossos erros, por maior que sejam ou se tornem em nossos tropeços, quando falhamos com alguém, mesmo sem querer, a solução para tudo pode começar pelo menor e mais significativo dos gestos: um pedido de desculpas. FIM

- Gostou da história, meu amor? - satisfeito e aliviado por terminar, Geraldo buscava avaliação.
- É.. sim - Liz parecia mais apreensiva do que antes desviando o olhar de seu pai.
- Está na hora de dormir agora, tudo bem? - o pai então a beijou na tesa e foi saindo do quarto lentamente até que parou junto ao batente da porta diminuindo o restante da iluminação que já estava baixa no dimmer deixando o quarto iluminado apenas pelos adesivos fosforescentes do teto e o pequeno abajur ao lado da cama que projetava estrelas pelas paredes. Lá, esperou por alguns instantes até que...

- Pai?
- Sim, querida, o que foi?
- Eu quebrei o vaso azul - Liz ensaiava um choro.
- Nós falamos com a mamãe amanhã, combinado? - o pai só podia sorrir.
- Sim - as lágrimas foram embora.
- Boa noite, querida.
- Boa noite, papai! - se encolheu nas cobertas.

Geraldo olhou mais uma vez para o quarto, bateu o olho no cofrinho da filha que ela vinha enchendo com mais frequência que o de costume, procurando ostensivamente nas frestas do sofá e até mesmo surripiando algumas que ficavam no console do carro quando iam passear. Na hora, lhe ocorrera que talvez ela estivesse tentando comprar um vaso novo, igual ao que havia sido quebrado alguns dias antes, mas nada impediu que sua mulher despedisse a empregada ao ver seu precioso vaso da dinastia x espatifado no chão. Que história teria de inventar para que ela recontratasse Shirley? Pensou bem durante o caminho até o quarto e depois lhe ocorreu que em alguns momentos, mais do que palavras, o que contaria na vida de um casal seriam certos gestos e atos... mas isso já é outra história.

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