Música

http://www.blogger.com/add-widget?widget.title=Megadeth Radio&widget.content=%3cscript type%3d%22text%2fjavascript%22 src%3d%22http%3a%2f%2fwidgets.clearspring.com%2fo%2f4adc6e9803694c34%2f4b33ce080a7736c8%2f4adc6e98366e230e%2f41409611%2fwidget.js%22%3e%3c%2fscript%3e

Pages

27 de maio de 2013

Cassandra

Jorge queria escrever sobre o amor, mas só via rostos mutilados quando fechava os olhos, suas mãos arriscavam mesmo assim palavras gentis sobre o carinho das memórias que o abraçavam. Agarrava-se às suas mais cândidas lembranças enquanto, do fundo de sua alma, brotavam sentimentos de pânico e medo do esquecimento de tudo aquilo que lhe trazia conforto, de tudo o que era... de quem era. E assim sentiu e soube que poderia simplesmente deixar de ser de uma hora pra outra, nada estava realmente ali e seus sentimentos, pensou, talvez fossem tão reais e, ao mesmo tempo, pequenos e frágeis quanto a sua caligrafia ébria no papel.

No medo de deixar de ser, cristalizou sua existência na partição fictícia de sua alma escrevendo de si na terceira pessoa. Sentimentos em parte inventados, em parte sentidos, tão sério, real e fiel quanto poderia ser para não se desmanchar no ar entregando e sentenciando a configuração de seu ser em uma folha de papel. O que era pior, ter uma ideia clara, absoluta e inescapável de si, saber-se sempre o mesmo, mas inteiro... ou afogar-se no vazio de uma existência que poderia ser o que quisesse, mas justo por isso, não era nada?

" A leveza e o peso" - dizia de si para si ao apossar-se da leitura incompleta de Milan Kundera (leu apenas o primeiro capítulo) como se tivesse "capturado a essência" já no premissa da obra por pura sagacidade. Jorge era assim, pretensioso, tanto que nomeou-se procurando Borges na ficção de si, ele que já possuía o prenome de Camões e não largaria um cânone da literatura se não pudesse se agarrar a outro. " A leveza e o peso" - repetia confuso enquanto tragava em falso, garganta fechada ao vício destreinado, restando-lhe sorver da fumaça fora de si a subir subir e sumir na vastidão da noite.

O escritor escrito, Jorge Luis, títere animado para dar voz e vida a cenas que seu portador não arriscava encarnar sozinho, encarava mais uma vez os abismos de sua alma da varanda de seu quarto, do alto de sua pretensão de querer saber tudo. A cena estava posta: em uma única mordida, inclinando-se levemente para as profundezas, julgou ter apercebido-se de todos os sabores da vida (de sua vida)... sem mal chegar ao recheio. Repetia triunfante "A leveza e o peso, essa é a chave!"

A fumaça o fazia mais uma vez divagar, lembrar e esquecer, na trilha das sensações, a marca do desejo no aroma impregnado na roupa que ressuscitava vícios do vício como tragar com um olho fechado e tocar a cinza freneticamente ao sabor de sua ansiedade. Memórias - tantas! Mas que se apagavam, desgrudavam das roupas, do pulmão que já não aceitava aquele veneno e o fez deixar o cigarro pela metade. O vício já não lhe pertencia, expulso de si, era somente possível guardar tanto quanto sua pele o permitia. Vícios e, indo mais além em suas considerações, desejos talvez fossem uma coisa de pele, de aderência e esquecimento. E não são os desejos o que existe de mais pulsante em nossa existência? O que existe de mais nós em nós mesmos?

Nada resistia, não havia fixidez natural, era necessária a intervenção pelo trauma de uma cicatriz ou a beleza de uma tatuagem. "Curioso" - pensou, pois há anos lutava com a decisão do que marcar a tinta em sua pele, se havia realmente algo nele que merecesse ser vestido para sempre. E um para sempre tão débil, pois desbotava e era possível remover. Jorge não se satisfez com essa imagem para uma lembrança eterna e tratou de construir outra, algo verdadeiramente eterno e imutável. Criou assim, dentro de si, uma essencialidade imóvel e atenta, não dormia e nem morria para bem além do esquecimento, protegida de tudo aquilo que pudesse lhe desfigurar, protegida, inclusive, dele mesmo!

"NÃO!" - um grito seco e rouco ecoou pela escuridão.

Sentindo a existência lhe escorrer por entre os dedos ele sentou, brandiu a bic azul esgrimando com seus fantasmas no velho caderno, certo de que atingiria em cheio a raiz de sua melancolia em um único golpe -  o ato de esquecer é que é eterno - colocou-se a escrever - pois o repetimos incessantemente afim de que a existência se torne suportável, dia-após-dia esquecemo-nos de quem somos e nos reconstruímos para não sentir por completo a passagem do tempo no processo. Amadureci: envelhecer também é uma arte.

O escritor se deitou incerto do que fizera, mas já fazendo, existindo, mesmo sem saber. Enunciava-se para o mundo sem temer esquecer ou impor conclusões que durassem para sempre. Podia não ser aquilo, podia não ser ele no papel, mas qualquer coisa era melhor do que o silêncio, não precisava mais ter tudo aquilo que sentia como comum, vulgar e irrelevante, o que fustigava, maus endêmicos e profundos eram coisa séria e verdadeira. E, de verdade, o mal me devorou naquela noite.

Encolhido na cama, esperei que acabasse, que me atropelassem de vez aqueles demônios desfigurados de meus pesadelos. Passou, e se quisesse dar um nome não seria exagero chamar de pânico, terror noturno ou, simplesmente, de Cassandra na onda de cientistas nomearem desastres naturais com o nome de mulheres. Cassandra, como a filha que nunca tive - diz o rapaz convencido de que seria uma acaso assombroso se gerasse descendentes - nomeio então minha criatura, o mal sem rosto e de propostas obscuras que me ronda e assombra, tornando-me cativo desses questionamentos tantos fadados a confusão e ao equívoco. Nomeando-o assim, torno-o, eu cativo de meus propósitos, em inspiração, em texto.

E eu, o que sou? Se domestico a angústia ao nomeá-la, domada torna-se a existência se também a ela couber um nome? Respondo no decreto de um começo que dê fim a dúvida cercando a identidade: este escritor não assinará mais como Escritor em Treinamento, nem mais irá enveredar na angústia só para curar o Tédio. Hoje sou Luis R. P. Mendes, não por ser mais verdadeiro, mais fiel a imagem que meu ser projeta no mundo, mas por recurso cênico - sai de cena o lamento perdido e entra um indivíduo igualmente questionar, mas ativo, atuante e ainda escritor. Não nasci para deixar ao mundo meros fragmentos de mim, os dias futuros conhecerão a minha obra, o meu legado.

Adeus (e até logo).

0 comentários: