O tempo parou em um fim de tarde corrido, mais trinta e três minutos e estaria tudo acabado. Estaria. Tenho o costume, quando estou atrasado ou mesmo quando apenas me sinto deslocado (o que representa quase a totalidade de minha existência) de fazer estimativas tresloucadas por tempo do meu deslocamento de ponto à ponto.
Era estranho como isso me acalmava. Na imediação de um atraso, eu simplesmente extendia o prazo de forma a chegar adiantado de alguma forma ou, se eu tivesse sorte, de chegar exatamente quando previsto. Meu compromisso era às quatro da tarde, mas, como saí de casa fora do horário, criei essa margem para me acalmar.
Evitara de olhar no relógio de pulso antigo fazendo jus ao velho jogo de paciência onde enganamos o tempo e fingimos não nos importar com ele o surpreendendo em seguida supondo que eras se passaram nesse trecho de tempo onde provavelmente só passaram cinco minutos. Talvez por isso, talvez por medo de me descobrir atrasado.
Cedi apenas quando fui atravessar a rua. Desengonçado, como todo homem que não consegue fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo, devo ter hesitado na travessia, ao menos acho, não me lembro. Se tivesse checado o horário antes, teria estimado que o ônibus das três e quarenta tivera sete minutos do terminal até, bem, me encontrar.
Ao menos assim supus ao acordar no hospital algumas noites depois totalmente remendado dos pés à cabeça. Vasculhei o quarto com meus olhos que recuperavam o foco. Na cabeceira, encontrei meu relógio de pulso antigo congelado em três e quarenta e sete. Meu pai dormia na cadeira ao lado, me juntei a ele em sonho, voltei a descansar.
Na manhã seguinte, causei comoção ao abrir os olhos. Foram meus pais a se abraçar, o enfermeiro a chamar o médico e um outro enfermeiro a me manter acordado - "ei, sortudo, bem vindo a sua nova vida!" A vontade era argumentar de que seu eu tivesse sorte o ônibus não teria me acertado em primeiro lugar, mas não era hora para ironias.
Aproveitei o momento com uma ligeira dose de inconformismo, pois sabia que nenhum de meus próximos feitos, por mais grandiosos que pudessem ser, iriam causar mais furor que meu abrir de olhos naquele momento, naquele quarto de hospital.
Não quero chateá-los com a minha longa história de recuperação ou mesmo com detalhes de minha "sorte" no choque com um corpo que deveria ter levado a melhor sobre mim, ficaria a impressão de que estou me gabando da minha força de vontade ou fé quando o que me curou foi a medicina. Como não sou médico, não falarei sobre isso.
Haviam se passado três ou quatro meses desde o acidente e eu me encontrava em casa remexendo ervilhas no purê de batatas. Sentávamos a mesa para um típico almoço de domingo, embora os olhares preocupados para eu, que ainda trajava uma tipóia e alguns curativos, não fossem tão típicos. A situação me era estranha.
Uma rápida olhada no relógio de pulso antigo revelava um horário indigno de almoço, quando muito um lanche, mas não um almoço. Foi-se boa parte da refeição para a lixeira junto de meu apetite e fui-me eu para bem longe perdido em pensamentos. Aquela sensação profunda de descompasso não poderia ser nova, poderia? Não lembrava.
A idade de um pensamento não se descobre tão simplesmente como as árvores que tem seus anéis contados, mesmo uma ideia nova pode fincar raizes vistosas. Tornou-se essa minha obsessão: curar o tempo, curar meu tempo. Não poderia viver a vida inteira tomando café da tarde, mesmo porque tomava o meu por volta das cinco...
Eu tinha de voltar aos trilhos, para tanto, busquei a raiz do problema. Era possível que a situação não fosse nova, sempre vivi ansioso e deslocado, poderia ter enfim descoberto a causa: descompasso. Pois que o relógio de pulso antigo não apresentava danos, poderia ter congelado muito antes do acidente. Eu poderia ter me esquecido de dar corda.
Claro que, as possibilidades eram grandes de que fosse realmente um problema novo. As estimativas dão sentido ao incidente, mais do que um horário da rotina, meu relógio marcava um evento específico: era evidencia de um trauma. Talvez eu estivesse fadado a viver naquele momento fatídico, congelar como o meu relógio congelara.
Em uma investição, nada é mais precioso e cofiável do que a intuição, ainda mais quando se é sobre si mesmo, e a minha dizia que eu passara longe da questão. Que trauma era esse? Já Cruzava a rua sem problemas, não temia coletivos e nem sequer tivera uma experiência extra-corpórea ou evento epifânico do gênero. Não podia ser um trauma.
Ouvia música deitado no quarto já há algum tempo, a tarde se arrastava e nada de minhas dúvidas se dissolverem. Decidi ir às ruas aproveitar as maravilhas de se não estar traumatizado "caminhadas são boas para espairecer" - eu pensei.
Andei até não poder mais, me afoguei em um mar de gente. Meus pais odiavam isso. Eu sabia que o pós-operatório poderia ser doloroso quando a anestesia passasse, mas já eram meses daquele pé no saco que era o celular tocando mil e uma vezes por minuto! Geralmente eu reportava educadamente onde estava... até onde eu soubesse.
No meio das pessoas que iam e vinham em uma calçada generosamente movimentada para um domingo, bem possível eu estivesse perto de um parque, vi muitas familias, percebi muitos outros relógios congelados como o meu. Pensei em avisá-los, mas novamente me perdi em meus próprios pensamentos a caminho de casa.
Não era um grande mistério descobrir os significados dos horários alheios. Uns eram o horário de entrada do trabalho, outros o do almoço e alguns ainda o de saída, a maioria pelo o que pude ver. Os pais de familia tinham o horário quebrado, possivelmente o exata hora em que chegavam em casa e viam a esposa e filhos... ou a amante, vai saber.
Já em casa vi que o de meu pai marcava meio-dia, sem surpresas, todos sabiam da questão que ele fazia do almoço em familia. Poderia ser meia-noite também, mas não me interessou muito lucrubar sobre o que se passava em seu quarto com a minha mãe nesse horário. Foi então que pensei que o meu poderia muito bem sinalizar três e pouco da madrugada... o que não ajudou muito. Alguns pensamentos dão em becos sem saída.
Meu irmão caçula jogava videogame na sala com um amigo, seu pequeno pulso revelava um relógio de plástico, daqueles porta-balinhas. Pensei nas crianças, essas não costumavam usar relógios, ao menos não os de verdade. O que faz sentido, pois nosso relógios adultos não fazem justiça ao tempo das crianças, as regras são outras.
Não não, elas se sentem traídas quando arriscam jogar por nossas regras. A hora nunca passa nas aulas de matemática, mas a tarde corre solta quando aproveitada na casa do amiguinho. Alguns até usam relógios, o amigo de meu irmão mesmo usava um marcando o início do desenho. Estes provavelmente contarão cedo primeiros fios de cabelo branco.
Suspirei por minha infância e o tempo em que também eu tinha uma relação rebelde com o tempo, que essas crianças seguissem não sabendo o significado de ser crianças, pois é justo esse: não saber. Que apreveitassem ao não saber que tem de aproveitar, a obrigação tira a graça de qualquer brincadeira. A garganta secou de tanta saudade.
Fui à cozinha beber um copo d'água e ver minha mãe preparar a janta, estava quase na hora segundo o inabalável relógio da cozinha. Esse seguia adiante, seus ponteiros ainda marchavam. É o tempo dos adultos do qual me referia, faltou dizer que até aos adultos assusta. Independente de meu relógio de pulso antigo, ele continuava a correr.
Sentado a mesa, desfrutei de um momento de tranquilidade repentino. Foi um dia cheio, foram meses cansativos e uma vida tediosa, mas sempre existiram momentos e momentos. Alí, vendo minha mãe cozinhar, ouvindo meu irmão jogando na sala (e o barulho de meu pai se juntando a ele), eu estava em paz. Não chequei mais o relógio de pulso antigo, não precisava, pois sabia: era hora de seguir em frente.
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