Ainda nem eram quatro horas da madrugada. João se surpreendia com o passar do tempo, violento e arbitrário, confuso na medida de seu compasso multidimensional. Parecia-lhe, a princípio, extenso nos abismos entre as batidas do relógio que guardava a manhã seguinte, tesouro enriquecido de planos, mas encurtava-se quando traçava mentalmente o percurso restante dos ponteiros calculando as horas que ainda teria de sono. João deitado, virado, esgotado, encolhido em seu quarto: o sono não vinha. Já eram quase quatro da manhã.
A janela de seu quarto balançava com o vento e a torrente. Viam-se gotas escorrendo pelo vitral acompanhadas do distinto cheiro de chuva das esvoaçantes árvores, sombras disformes em sua visão podada pelo sono e o vidro embaçado. Dominou-lhe uma sensação de profunda tranquilidade logo ceifada pelo fascínio que a imagem bucólica lhe proporcionava, a reflexão do papel da natureza e seu diálogo com o espírito do homem e até o fato de bucolismo lembrar a palavra botulismo! (que ele não tinha certeza do que significava) - "mania tola de se pensar sobre tudo" - pensou ao jogar as cobertas para o lado e se dirigir ao banheiro.
João, sem saber direito o que fazer, olhou para o espelho tentando perceber a figura que se formava na noite sombria, desejava entender a imagem que projetava, aquilo que escapava para o mundo e o esvaziava, talvez ambicionasse de alguma forma se restituir, pois sentia que em seu interior não havia mais nada. Seus olhos acostumados com a escuridão e o coração sombrio o fizeram manter a luz apagada. Permaneceu anônimo.
Suas mãos foram ao rosto e seu corpo pendeu na direção do espelho, precisaria completar com o tato e a imaginação o que a visão não lhe permitiu. Pretendia não se exaltar com a descoberta, pois, naquele momento, sua garganta seca entalada de tristeza suplicava pelo alívio de qualquer gota salubre de sono.. de nada valeria um oceano de salgadas reflexões. Uma imagem simples de si mesmo, era isso o que esperava obter, fechar o circuito de deliberações erráticas por questões existenciais vulgares e voltar a dormir.
Não conseguiu.
A noite percorreu o seu rosto guiando suas mãos por trilhas deixadas pelo tempo - "outras madrugadas passaram por aqui" - se poderia ler. Era jovem, relativamente jovem, mas a angústia pesava-lhe mais de um século nas linhas de expressão e olheiras que assumiam dimensões consideráveis na imaginação sombria. A barba mal-feita caía-lhe como atestado de abandono e o cenho franzido e olhar compassivo, configuração padrão de seu semblante, davam-lhe ares de fraqueza por uma tristeza injustificável.
Apesar de tudo, João parecia ostentar orgulho pelo o que havia se tornado e deixou um sorriso debochado escapar. Via o mal-estar impregnado como cicatriz de batalha, sonhava com a possibilidade de morrer de amor, que o coração convalescido na frustração parasse de bater quando o destino lhe parecesse muito trágico... mas logo percebeu que ninguém morre realmente disso. Iria morrer de velho, de uma velhice verdadeira e degradante, de doença, de acidente e provavelmente não naquela noite. Com esse pensamento, o sorriso se desfez e a luz do banheiro acendeu-se no ríspido roçar de seu polegar, queria punir a si e a seus olhos, as janelas da alma, por permitirem a entrada de pensamentos tão ridículos de morte.
Na claridão ofuscante da lâmpada halógena, viu-se grande por seus agora revelados olhos inchados de sono no diminuto banheiro de seu apartamento de um quarto no primeiro andar. A vida, pensou, tinha-lhe sido até que generosa. Em uma cidade notória por seu elevado custo de vida, não tardou até alcançar a tal da independência financeira - termo que repudiava, pois à partir do momento em que passou a pagar suas contas, sua vida deixou de ser sua, afinal, se um homem é o que ele faz, João seria um balancete, pois o que mais fazia eram contas e estimativas... embora sua profissão nada tivesse a ver com operações financeiras.
Encheu-se de orgulho ao reconhecer o pequeno banheiro tornado ainda menor pelo box ampliado e ducha customizada, excentricidade que lhe valeram mais de um mês de trabalho. Mesmo o espelho que o encarava nos últimos minutos assumia mais importância que seu reflexo, cumprimentava-se pelo bom negócio ao se lembrar de que achado foi resgatá-lo em um feira de antiguidades de seu bairro - "oval com adornos góticos em prata polida e por um preço módico... realmente, que achado!"
A madrugada avançava sobre ele o empurrando para fora do banheiro, para coisas mais úteis, atitudes que não precisavam salvar o mundo, mas ao menos justificariam a privação do sono no desenvolvimento de alguma atividade com conteúdo e sentido, início meio e fim, qualidades das quais sua vida parecia carecer. João foi até a sala e ligou a televisão, poderia partir dali... mas logo teve de voltar ao ponto de partida por qualquer motivo, metáfora novamente de sua vida e as diversas formas que assumia a inércia. No caso, voltaria ao banheiro para desligar a luz. Munido desta missão simples, atravessou o pequeno apartamento em um passo rápido com uma pressa sem razão de ser e o breve momento de exaltação o fez perceber que definitivamente não dormiria. Apagou a luz, agarrou uma escova e colocou um pouco de creme dental sobre ela: decidiu escovar os dentes em frente a televisão e começar o seu dia.
Acomodado no sofá de dois lugares, as imagens passavam batido, saíam-lhe tão aleatórias quanto suas escovadas sem o espelho para orientar, não sabia o que estava fazendo, não sabia o que pensar... restando-lhe na cabeça coisas banais como o almoço do amanhã que chegava e as compras do mês. A rotina tomou conta e passou a fazer planos. Sua lista costumava começar pelo o que já possuía, a abordagem Pollyanna de fazer compras, poderia deixar de fora a pasta de dente, por exemplo, já que em suas primeiras compras do mês, e não fazia muito morava sozinho, havia se excedido e comprado o suficiente para aguentar mais de um semestre - "como era difícil acabar com uma simples bisnaga de pasta de dente!" - João pesaroso refletia, sua existência parecia-lhe sutil, inexpressiva, sem significado... em contraposição a lares onde a pasta de dente está sempre em falta.
Após longa viagem, aportou de volta aos seus sentidos, se apercebeu do programa que assistia e esperou o comercial para ir ao banheiro terminar de escovar os dentes. E assim esperou, sabe-se lá quanto, com a escova parada na boca, embora tivesse pouco ou nenhum interesse na programação da madrugada. Por fim, acompanhado ao fundo pelos jingles mais estranhos do mundo publicitário, o banheiro o recebeu de volta, com muito mais folga do que há minutos atrás. Toda a sua grandeza, todo o seu orgulho, foram suplantados pela imensidão que havia entre a ideia que tinha de si mesmo, suas paixões e sonhos, e a realidade limitada de seus atos. Como um condenado, deu suas últimas escovadas, cuspiu na pia e em meio a escuridão do cômodo e de seus ânimos poderia jurar que havia sangue na excreção visceral de angústia. A água refrescou seu rosto lavou o conteúdo da pia antes que pudesse checar, João desesperado esperava despertar algum sono com isso, dormiria mesmo que perdesse o dia seguinte: correu para debaixo das cobertas. Precisava do sossego.
A chuva continuava lá fora no tintilar das gotas na janela. O sono não vinha e nem por isso a manhã parecia mais próxima. Sentia-se longe de tudo e de todos naquela casa vazia com seu silêncio fantasmagórico quebrado ocasionalmente por ruídos vindos do televisor da sala. Deixou-a acesa, uma das vantagens de ser independente, era responsável por sua própria solidão e como faria uso dela. Nessa noite optou pela companhia de um ruído, pela ilusão, pela fantasmagoria, optou por se enganar, se engasgar consigo.
Ainda eram cinco da manhã e nosso personagem sentiu-se esgotado de possibilidades e de cansaço. Encontrando forças sabe-se lá onde, jogou novamente as cobertas de lado e foi até a escrivaninha próxima a janela. Iluminado pela parca luz que escapava pelo vitral, pôs-se a escrever em uma folha de papel qualquer falando de sua tristeza em terceira pessoa. Inventou para si um enredo que desse conta do tamanho de sua solidão, pois esta lhe parecia só encontrar retrato digno na ficção; escolheu para si um nome que fosse comum, selecionado ao acaso, tentando diminuir a importância de seu mal-estar.
Foi então que, contra todas as possibilidades, amanheceu, ou vinha amanhecendo, e chuva cessou. Algo me impediu de perceber, nem sempre notamos, mas a vida se processa, progride, cabendo a nós apenas questionar o quanto e como controlamos a direção desse movimento e perceber como o tempo age sobre nós. Tudo passa, a chuva, a noite e até mesmo a vontade de escrever sobre um assunto que não tem remédio.
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